Um romance de formação gay na Amazônia

O cine Ópera, espaço de exibição de filmes erótico-pornográficos, se tornou em Belém-PA (Amazônia) um local de resistência do mercado de cinemas de rua na cidade, e da cultura marginalizada pelo sexo. Inaugurado entre os anos de 1960 – 1961, ele mantém suas portas abertas até hoje, com um público fiel e cativo que ali buscam uma espécie de divertimento sexual, onde encontros casuais, de pequenos flertes até namoros mais quentes se desenrolam enquanto a produção cinematográfica da pornografia nacional e internacional é exibida na grande tela. Em 2002, o Ópera foi o cinema de maior renda e consequentemente de maior público, segundo informações do crítico de cinema Ismaelino Pinto, conseguindo passar a frente até de outros cinemas do chamado circuito comercial, desde a crise gerada pela pirataria e distribuição de filmes pela internet, reafirmando sua total resistência a este mercado dentro da cidade.

 

 

Mas nem só de filmes de sexo explícito “O Bonzão Bonitão”, apelido dado por João Jorge Hage (proprietário e fundador do cinema que faleceu em 1993), está construída a história deste cinema. Na década de 1940 aquele espaço havia sido um teatro, o “Coliseu” que recebia grandes shows e artistas durante o período da quadra nazarena, promovido por Félix Rocque até a sua morte. O filme alemão “A noite do Papagaio Verde” abriu as portas do Ópera, como o mais novo e um dos melhores cinemas de Belém com seus 1,5 mil lugares, de dois andares com mezanino, e projetores a carvão de marcas alemães Elerman e Zeiss. Cogita-se que o primeiro filme de sexo explicito exibido pelo Ópera foi “O império dos sentidos” em meados dos anos de 1980, iniciando assim, sua vida pornográfica. É interessante também dizer que mesmo após o cine Ópera tornar-se um cinema de pornografia, algumas tradições por parte da família que administra permanecem. Sempre na sexta-feira santa (feriado que antecede a Páscoa), o cinema exibe o filme A paixão de Cristo, dia este onde o cinema quase não possui frequência.

O documentário é um experimento poético sobre um cinema e sua história de obstinação, numa resistência que busca no sexo a sua sobrevivência e permanência comercial no centro religioso da cidade de Belém do Pará. A contradição é o argumento principal do documentário. Exibindo um cinema que transborda a ficção explícita de seus filmes para a realidade da sala de projeção, onde as pessoas que ali frequentam, ao colocarem seus pés de maneira rápida e furtiva no interior do cinema, compartilham de um estado de anonimato quase que total, pelo escuro da sala, pela possibilidade da liberdade de seu sexo, onde este sexo não o define como identidade, mas extrapola desejos até então reprimidos pela sociedade que segue a vida fora daquele ambiente. A maioria homens, de jovens a idosos, de todas as classes sociais, existem também os travestis, que dentro do cinema atendem seus clientes e vivem suas fantasias, porém ao adentrarmos no Ópera, deixamos de ser nomes próprios, para nos tornarmos apenas em espectadores quaisquer, atuando num filme como coadjuvante num coro regido pela promiscuidade, num gozo que chega no limite da perversidade, da putaria “suja”.

De resistência dupla, “o Bonzão Bonitão” ainda vive, goza de boa vida, e resiste ao lado de seus frequentadores que lá o tomam como o espaço da fuga libidinosa, onde histórias passionais se desenrolam, trazendo a tona para sociedade uma espécie de mito, lendas urbanas e sexuais espalhadas de boca em boca. Um das histórias mais conhecidas é a do travesti assassinado no interior do banheiro do cinema, pelo seu amante, que na cólera causada pelo ciúme do mesmo, o matou ao vê-lo com outros homens. Também existe o caso dos senhores que morreram de mal súbito do coração sentados nas antigas poltronas do cinema, que são encontrados ao final do expediente pelos funcionários. Tais histórias, algumas lendas outras reais, causam certo preconceito na vista de muitos sobre a existência do cine Ópera, num alerta negativo, para não dizer pejorativo por parte da sociedade contra os homossexuais, sendo eles, a maioria do público frequentador do cinema. O filme busca mostrar uma visão destes conflitos, expondo histórias de vidas que se entrelaçam no emaranhado do que foi e é o cine Ópera, exibindo seu passado e sua atual realidade que pulsa forte no centro de uma cidade e sua História.

O processo de pesquisa para o filme durou um ano e meio, neste período pude conviver quase que diariamente dentro do cinema, trocar experiências, afetos e até mesmo sexo com as pessoas que frequentam o Ópera. Neste período tive o prazer e a honra de conhecer Raissa Gorbachov, uma mulher travesti, linda, mas de feições sofridas pela vida e por sua história de resistência. Raissa tinha o sonho de trabalhar na televisão, saiu da Amazônia para São Paulo, grande capital do Brasil, sendo um dos maiores centros econômicos e culturais do país, porém lá a promessa de vida de estrela, tornou-se em fracasso. Raissa foi presa, contraiu HIV dentro da penitenciaria de Carandirú, sobreviveu a uma grande chacina ocorrida dentro do presídio durante uma rebelião, e finalmente cumpriu sua pena e retornou para Belém, onde começou a desenvolver um trabalho social e político com travestis portadoras de HIV. Raissa ganhou prêmio do governo federal pelo seu trabalho. Conheci a história de Raissa e percebi que ela refletia muito bem o significado do cine Ópera para mim e para a sociedade. Não como um relato de fracasso, afinal Raissa exibia sempre um sorriso no rosto, e uma cresça de que amanhã seria melhor. Cinco meses após as filmagens do documentário, Raissa Gorbachov morreu, mas eternizou seu relato e sua costura de afetos através de seus sonhos.

 

 

Com o tempo de convivência no cinema, fui percebendo que ali existia um grupo de amigos, entre eles, homossexuais, e bissexuais, e homens casados com mulheres que mantinham secretamente uma vida sexual com outros homens dentro do cinema. Não era apenas o sexo, mas também o sexo. Havia afeto, um rede de afetos constituída pelo desejo oprimido por uma sociedade preconceituosa e patriarcal. Neste momento percebi as diversas camadas existentes na vida, e que tais densidades possuem complexidades e formas de adentrar. Raissa com toda a sua generosidade, como disse anteriormente, foi a responsável por essa costura e meu contato com a camada do afeto no cine Ópera. Não tenho interesse aqui de colocar em questão conceitos que envolvem guetos, eu não gosto de considerar o grupo de frequentadores do Ópera (do qual eu me incluo) como um gueto. Somos pessoas em busca de nossos pares e diversos em meio a liberdade de gênero e sexual, afinal vamos a igreja e ao puteiro com a mesma fé. Por essas e outras histórias que o cine Ópera é considerado um espaço de educação sentimental para brincarmos com o título de Balzac, ou se formos mais além, uma espécie de romance de formação gay na Amazônia.

 

Victor de LaRoque (Brasil) is a multimedia artist who communicate between performance and its expansion as a language in development like a path with trace remains. His artistic production emphasizes “the need of uncomfortable” as an instrument to an unveil dialogue between his statement and the audience. This unspoken language can reach the borders of bitterness or even wilderness, an unstable process of everyday life through compositions that reach movies, photography, performance, articles, recipes, instalation art, web art and small fragments with no audience. His work has been presented in exhibitions and artistic residence in Brazil as if Portugal, France, Sweden, United States, Mexico and Colombia.